Urbanistas explicam o processo de formação de Jacarepaguá


Da Igreja da Pena, Pechincha e Freguesia - zecagoncalves




RIO - De “longe para caramba” a “Suíça Carioca”, Jacarepaguá reúne qualidades que são motivos de orgulho e defeitos que costumam ficar escondidos e só quem mora lá sabe do que se trata. Mas, afinal, quem consegue defini-lo? É um bairro que abrange diversos sub-bairros? Uma região administrativa? Tais questionamentos certamente já foram feitos por moradores ou visitantes que um dia se aventuraram na tentativa de destrinchar uma das geografias mais complexas da cidade. Jacarepaguá, na realidade, é um bairro, assim como Taquara, Tanque, Freguesia, Curicica, Anil, Gardênia Azul, Praça Seca, Pechincha e Cidade de Deus. Diferentemente do que pensa a maioria, Jacarepaguá não é “tudo isso”, mas, atualmente, apenas “uma parte disso tudo”.

O processo de desmembramento começou na década de 80, entre 1981 e 1985, com a consolidação dos então sub-bairros como bairros independentes. Apesar de ainda ter a maior área em extensão territorial, Jacarepaguá hoje é formado pelas terras mais próximas ao Maciço da Pedra Branca, num formato que lembra uma sela de cavalo. Já a Região Administrativa de Jacarepaguá continua contemplando todos os antigos sub-bairros, de Curicica a Vila Valqueire, menos Cidade de Deus, que é uma região administrativa única.

Com tantas transformações, é fácil notar as dificuldades de diferenciar todos os bairros. Onde começa um e termina o outro? No meio dessa divisão, longas vias acabam tendo paternalidades diversas. A Avenida Geremário Dantas, por exemplo, passa por Freguesia e Pechincha e a fronteira é a Estrada do Capenha. Já a Estrada dos Bandeirantes talvez seja a recordista de bairros: Curicica, Jacarepaguá, Taquara, Camorim e Vargens, segundo os mapas do Instituto Pereira Passos.

Ao escrever o livro “Marketing da sustentabilidade educacional”, que faz referência à construção da Freguesia, aos lançamentos imobiliários e à ecologia urbana na região, a urbanista Gisela Santana sofreu com as dificuldades para obter informações sobre a divisão entre os bairros. Ela lembra que, apesar das fronteiras delimitadas pela prefeitura, as divisões simbólicas, perpetuadas por moradores antigos, também precisam ser consideradas.

— O livro conta a história de Jacarepaguá e levanta o Plano Lucio Costa e os limites geográficos da região, definidos pelos atores sociais. O mercado imobiliário, por exemplo, faz divisão por região macro, ou seja, considera Jacarepaguá como um único bairro. Já a população tem a questão de afetividade e do imaginário social. Quem mora no final da Guanumbi pode falar que mora na Freguesia, por exemplo, apesar de já ser Jacarepaguá. A prefeitura, por outro lado, utiliza uma divisão administrativa mais criteriosa — explica a urbanista.

Em sua pesquisa, Gisela retomou o momento de criação das divisões da cidade, consolidadas pelos caminhos que os jesuítas faziam.

— As ocupações urbanas foram surgindo a partir das rotas dos jesuítas. Foram os casos dos largos da Freguesia e do Tanque e da Praça Seca, por exemplo. Foi a partir desses tipos de espaço que os bairros se criaram. Os bondes também tiveram papel estruturador — explica Gisela, que estudou mais a fundo a história da Freguesia. — Eram 21 freguesias eclesiásticas no Rio, como paróquias. A freguesia de Jacarepaguá, criada em 1661, pertencia à freguesia de Inhaúma. Jacarepaguá foi se formando com o desmembramento das terras do Barão da Taquara, a partir de 1795.





Urbanista Gisela Santana na esquina da estrada dos Três Rio com Guanumbi, onde marca a fronteira entre Jacarepaguá e Freguesia. - marcelodejesus


Originalmente, apenas Jacarepaguá e os pequenos bairros internos foram sendo ocupados, à medida que se valorizavam ao longo do tempo, até se tornarem independentes. A doutora em urbanismo Ana Beatriz Velasques, que escreveu um trabalho sobre a dinâmica socioespacial de Jacarepaguá, pela UFF, lembra que a ocupação da Freguesia aumentou após a inauguração da Estrada Grajaú-Jacarepaguá, por exemplo. Já o fortalecimento da Praça Seca e da Taquara é anterior, pois ficavam no meio da rota entre a Zona Norte e a praia:

— Antes, a única forma de adentrar a Baixada de Jacarepaguá era pela Zona Norte, a partir de Cascadura e Madureira, passando por Praça Seca e Taquara, no caminho conhecido como “Garganta do Mato Alto”, um estrangulamento do quase encontro dos dois maciços, que, junto com o sistema lagunar, conformam um triângulo baixo e definem o território da Região Administrativa de Jacarepaguá.

Além do deslocamento espacial, a pesquisadora diz que motivos políticos explicam o fortalecimento dos bairros:

— Há 15 anos, quando Eduardo Paes começou a se fortalecer politicamente, sua base eleitoral era a região da Barra e de Jacarepaguá. Coincidentemente, uma área com potencial e espaço para ser urbanizado. Foi uma região que serviu como base eleitoral de vários políticos. Na mão do mercado, essa nova fronteira de expansão urbana se adensou sem freios e os resultados são muitos, especialmente quanto ao sistema viário, como a Linha Amarela, que foi construída à medida que a área foi se adensando, e o BRT; além de mudanças urbanísticas, como o surgimento de muitos condomínios, o aumento da favelização e as avenidas congestionadas.

A chegada de novos moradores à região de fato parece ter aumentado a confusão sobre os bairros. Se pessoas criadas em Jacarepaguá dizem que a diferenciação é fácil, apesar de muitos não mostrarem conhecer todos os detalhes, os iniciantes não escondem as dúvidas. Porteiro de um condomínio no final da Guanumbi há quatro anos, Jorge da Silva vai direto ao ponto.

— A verdade é que ninguém entende o que é Jacarepaguá — diz Silva, que respondeu que o condomínio fica na Freguesia, apesar de ser oficialmente localizado em Jacarepaguá, inclusive como consta na placa em frente à portaria. — Pelo menos é assim (Freguesia) que as pessoas chamam e é esse nome que chega na correspondência. Acho que até valoriza o terreno. Confesso que não sei direito.


A distribuição dos sub-bairros de Jacarepaguá e seu entorno - Editoria de Arte

Plano Lucio Costa previu Jacarepaguá

Gisela Santana ressalta que a ausência de marcos delimitadores contribui para a desinformação.

— Normalmente não tem placa, monumento, nada físico que explicite a fronteira. É uma linha quase imaginária. E como aumentou a população recente, com muita gente vindo de outros lugares do Rio, essa dúvida cresceu. Às vezes nem os Correios sabem. A propaganda imobiliária também confunde — diz.

O crescimento da população pode ser visto em números. Segundo dados da Secretaria municipal de Fazenda, Taquara é o bairro da região com maior quantidade de imóveis cadastrados no IPTU, entre terrenos, residenciais e comerciais. São 34.731 unidades. Em seguida estão Jacarepaguá, com 32.477; e Freguesia, com 28.708. São os três bairros mais populosos, que, juntos, reúnem 71% do total de imóveis da região.


A fronteira. Do alto do hotel Grand Mercure o ponto de divisa fica evidente: antes do Rio Camorim, Barra. Depois, Jacarepaguá - marcelodejesus


Se dentro de Jacarepaguá a divisão não é muito fácil, o que dizer da fronteira com a Barra. Região em voga atualmente, o parque olímpico e imediações sofrem com a eterna dúvida sobre em qual bairro se localiza. A maioria classifica como Barra, até por questão de status. Do outro lado, há quem lembre que o antigo autódromo, no mesmo terreno, era chamado de autódromo de Jacarepaguá. Também há quem aposte em Curicica.

Pelos mapas do Instituto Pereira Passos, é possível concluir que o parque olímpico fica na Barra. O entorno, porém, é Jacarepaguá. Isso porque o terreno que abriga os ginásios esportivos está para dentro da lagoa, que pertence à Barra. A fronteira é o Rio Camorim, que passa por dentro do Riocentro, ou seja, no meio da Salvador Allende. Do outro lado da Abelardo Bueno (os condomínios Rio 2 e Cidade Jardim, por exemplo), o bairro é Jacarepaguá. Passando para a Estrada dos Bandeirantes está Curicica.

A integração entre Barra e Jacarepaguá tem fundamento urbanístico e propósito no desenvolvimento da cidade, além da proximidade geográfica. Diretor da Escola de Arquitetura da UFF, Gerônimo Leitão, estudioso do Plano Lucio Costa, lembra que o urbanista contemplava a Baixada de Jacarepaguá no seu projeto:

— Lucio Costa sempre enxergou Jacarepaguá como um futuro centro metropolitano do Rio, justamente na Abellardo Bueno, onde hoje fica da localização. O plano piloto não era só para a Barra, era para a Baixada de Jacarepaguá também. Elas formavam uma área que deveria se configurar como uma zona de expansão da cidade. A sua tarefa era promover o desenvolvimento equilibrado do Rio. Na visão do Lucio Costa, a concentração na Zona Central desequilibrava a Zona Oeste, e ele acreditava que a principal alternativa era a ocupação na direção da Zona Oeste.

Leitão explica, porém, que o plano piloto foi muito alterado. A ponto de Lucio Costa tê-lo abandonado, por discordar das alterações que descaracterizavam o caráter original preservacionista:

— Desde então, houve um sem-número de transformações. Algumas certamente positivas, mas muitas negativas. Jacarepaguá ganhou uma autonomia de territorialidade que não pode ser desconsiderada. E o papel imobiliário é significativo na valorização da região, como alternativa de produção de imóveis. Hoje há uma dissociação maior entre os bairros, algo que Lucio Costa não enxergava. No plebiscito de emancipação da Barra, por exemplo, não consideravam Jacarepaguá. Ele também pensava no seu plano, em Jacarepaguá como um bairro único, e não desmembrado.



Jorge da Silva trabalha em uma portaria na Estrada do Guanumbi - marcelodejesus


A crise de identidade de Jacarepaguá, desmembrada na independência de seus bairros internos, pode ganhar novos capítulos em breve. O projeto de lei 1.369/2015, do vereador Marcelino D’Almeida (PMDB) prevê a retirada de Barra e Jacarepaguá da Zona Oeste. Na primeira discussão na Câmara dos Vereadores o projeto foi aprovado, e agora será encaminhado para outras comissões internas.

Classificações administrativas à parte, moradores criados em Jacarepaguá se orgulham de conhecer a região como a palma de suas mãos. A nutricionista Virginia Santos, que morou a vida inteira na Taquara e mora há pouco tempo no Recreio, diz que sabe dizer a localização de qualquer bairro. Ela, porém, achava que todos os lugares se tratavam de sub-bairros.
— Agora virou bagunça então. Eu achava que tudo era Jacarepaguá — diz.

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