PORTO DO AÇU : Um Mega Empreendimento Cercado de Impasses


Vista aérea do Sítio do Birica: vazios ao redor é resultado de desapropriações para instalação do distrito industrial de São João da Barra e do Porto do Açu - Daniel Marenco








RIO - Quando anunciado, o Porto do Açu, em São João da Barra, no Norte Fluminense, era uma promessa de desenvolvimento para a região, projetado sob o conceito de porto-indústria que atrairia empresas de vários setores para o distrito industrial que seria instalado a sua volta. Faz dez anos do lançamento da pedra fundamental. A operação do empreendimento ainda está longe de alcançar o que se pretendia. Mas os conflitos sociais que vieram junto com o projeto, esses sim, alastraram-se. No centro das polêmicas estão as desapropriações de terras numa área de cerca de 90 quilômetros quadrados. Os poucos que resistem em suas propriedades, como a professora aposentada Noêmia Magalhães, vivem sob a ameaça de, a qualquer momento, perder seu lar. Entre os tantos que já foram obrigados multiplicam-se histórias de propostas ilusórias.



INDENIZAÇÕES PROBLEMÁTICAS




Nesse desenrolar cheio de controvérsias, o Porto do Açu já opera desde outubro de 2014. Mas grande parte dos agricultores que tiveram suas terras desapropriadas para a instalação do empreendimento e de um distrito industrial em suas proximidades ainda não recebeu as indenizações a que teria direito. Segundo a Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio (Codin, responsável pelo processo), todos os valores relativos às áreas desocupadas no polígono do distrito industrial foram depositados em juízo. A empresa afirma ter a informação de que 70% dos proprietários teriam sido pagos. Outros 30%, admite a empresa estadual, ainda não teriam acesso às quantias devido a pendências judiciais. Segundo o advogado Rodrigo Pessanha, no entanto, que defende ao menos 150 famílias afetadas, a quantidade de produtores que permaneceriam sem o dinheiro alcançaria a maioria dos atingidos.

- Perderam as terras, mas não receberam. Para ter acesso às indenizações, os agricultores precisam cumprir critérios, como obter certidões negativas da Justiça e publicar um edital sobre o pagamento. Os custos desses atos processuais deveriam ser da Codin. Mas, com a crise no estado, a companhia não tem verba para pagá-los. Quem tem melhores condições financeiras, paga por conta própria. Mas esses são a minoria - diz Pessanha.




Propriedade desapropriada: casa que havia no terreno foi demolida - Daniel Marenco





Em toda a região, os impasses acerca das desapropriações incluem ainda o debate sobre os valores propostos pela Codin nas indenizações. Praticamente todos os clientes de Pessanha, por exemplo, questionam na Justiça a quantia oferecida pelas terras.

- A meu ver, são valores irrisórios, de R$ 90 mil a R$ 100 mil o alqueire ou aproximadamente R$ 12 mil o lote. Essas quantias foram depositadas em juízo pela Codin, até por uma necessidade de que isso aconteça para que haja as desapropriações. Mas passam longe dos valores de mercado - diz Pessanha.

A Codin, por outro lado, não divulga valores. Mas afirma que, para cada área, foram elaborados laudos de avaliação em conformidade com as normas técnicas apropriadas. Ao contrário do que diz Pessanha, a companhia nega que haja atrasos ou pendências por parte da Codin nesses processos.

"A questão judicial segue os trâmites normais da Justiça", afirma a Codin.



HISTÓRIA COMO A DO CINEMA




Noêmia Magalhães, aos 70 anos, resiste há seis anos a tentativas de desapropriação do sítio em que vive, em São João da Barra - Daniel Marenco




O silêncio ao redor e a escuridão sob o céu estrelado, que poderiam supor a paz de uma zona rural do interior, na verdade confessam toda noite uma história de conflitos e dores, mas também de obstinação. Aos 70 anos, Noêmia Magalhães não tem mais vizinhos por perto. O mais próximo está a cinco quilômetros do Sítio do Birica, onde mora com o marido, no quinto distrito de São João da Barra, no Norte do estado. Nos últimos anos, a população desse pedaço do Rio teve suas terras desapropriadas, para darem espaço ao Porto do Açu e à promessa do distrito industrial. Noêmia decidiu lutar pelo torrão que é a realização de seus sonhos, onde guarda memórias e um projeto de vida. Por ter ficado no caminho do negócio bilionário, conta ter ouvido propostas imorais, sofrido ameaças e pressão psicológica. Sempre que o sol se vai, ela fica numa ilha cercada pelo breu. Mas não sucumbe, levando adiante sua trama de cinema.

A história lembra a de Clara, interpretada por Sônia Braga no filme “Aquarius”. No longa de Kleber Mendonça Filho, a personagem desafia as propostas de uma construtora que pretende subir, no lugar do prédio em que ela vive, um novo edifício, na Praia de Boa Viagem, no Recife. Na vida real, Noêmia enfrenta há seis anos os planos de um megaempreendimento que, no início, pertenceu a Eike Batista e, após a derrocada do empresário, passou às mãos da Prumo Logística, controlada por um fundo americano. Qualquer semelhança entre os enredos é mera coincidência. Noêmia ainda nem assistiu ao filme. Mas já sabe que, dependendo dela, as duas histórias terão um mesmo fim, de resistência.

— Não vou desistir. Nunca corri tanto risco de perder o sítio quanto agora. Há um ano, um juiz deu a posse do imóvel ao empreendimento. Uma semana depois, voltou atrás. Mandou que o sítio fosse reavaliado, o que aconteceu em abril. Eles acham que, depois de tanta luta, vou embora facilmente? Vou desobedecer, vão me algemar, podem me prender — diz Noêmia, apresentando razões para a persistência: — Na negociação, existem duas coisas distintas: preço e valor. Quem não sabe a diferença não entende o amor. Quanto vale seu projeto de vida? Isso se negocia? Você dá preço a seu sonho? Valores não se vendem, nem se compram. .

‘Na negociação, existem duas coisas distintas: preço e valor. Quem não sabe a diferença não entende o amor. Quanto vale seu projeto de vida? Isso se negocia? Você dá preço a seu sonho? Valores não se vendem, nem se compram’

- Noêmia MagalhãesProprietária de sítio

UM PAU-BRASIL PARA CADA NETO

Como no filme, a Clara de São João da Barra também é aposentada. Só que foi professora, em vez de jornalista. Com o marido, o bancário Valmir Batista, ela sempre projetou ter um sítio. Faz 20 anos que concretizou o desejo. Passou a comer o que cultivava na horta, sem agrotóxicos. Plantou um pau-brasil para cada um dos quatro netos, e outras árvores batizadas com os nomes de amigos. No início, quando acordava, abria a janela e ouvia uma orquestra de pássaros, que acreditava ser tocada especialmente para ela. Até que, dez anos atrás, foi lançada a pedra fundamental do porto. No começo, até parecia um alento, com a expectativa de que movimentasse a região e ajudasse nas vendas dos pequenos produtores locais.

Em 2010, contudo, a Codin (subordinada à Secretaria estadual de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Serviços) iniciou as desapropriações para entregar as terras ao empreendimento, com a proposta de se criar ali um polo metalmecânico na retaguarda do porto, além de uma área para armazenamento de produtos. Sonho e pesadelo passaram a ter linha tênue.

— A gente valia muito pouco. Aqueles agricultores que tinham suas histórias ali, que enterraram o umbigo de seus filhos na terra, eram tratados com descaso. Não estavam preocupados com eles. Queriam as terras — afirma Noêmia, que resolveu fazer da luta pessoal uma briga coletiva, com os produtores da região.

Os vizinhos começaram a ir embora. Alguns, foram retirados à força e suas casas transformadas em ruínas, ainda hoje espalhadas pela região do distrito industrial — que se estende por 60 quilômetros quadrados, onde havia 409 áreas rurais. Nesse cenário, até dois anos atrás, em vez dos pássaros Noêmia passou a avistar placas da LLX, subsidiária de logística do grupo EBX, com o aviso de que aquela era uma área particular e, por segurança, não deveria ser ultrapassada. Agora, com a gerência da Prumo, volta e meia topa com seguranças a cavalo rondando o sítio.

— Como gosto de fazer de um limão uma limonada, passei a achar que era segurança para mim. Até amizade fiz com os rapazes. Porque posso dizer que estamos ilhados. Se acontece alguma coisa, para quem apelar?

Os perigos, aliás, reais ou talvez fabricados por quem quer vê-la longe, diz ela, se tornaram constantes. Uma noite, o marido e ela passaram duas horas jogando água na estrada que passa em frente ao sítio, para tentar evitar que um incêndio no terreno da frente os atingisse. Outra vez, acordaram com tiros na porta de casa. Em duas ocasiões, Noêmia se viu com um revólver na cabeça. Teve um carro roubado e, em inúmeros telefonemas, a voz do outro lado dizia apenas que sabia onde ela estava.

— As pessoas, até da minha família, têm medo de andar comigo. Acham que qualquer dia posso levar um tiro — diz ela.

A tranquilidade foi embora, e muito do verde no entorno do sítio também. Hoje, a propriedade parece um oásis em meio a terras secas. A cerca de dois quilômetros da casa de Noêmia, a areia retirada do mar para a construção de uma das estruturas do porto formou uma espécie de deserto de dunas. E faz anos que moradores e ambientalistas questionam se o empreendimento salinizou ou não o solo e a água locais.

Outra característica: se o porto funciona desde 2014 com operações envolvendo minério de ferro, na maior parte do distrito industrial o que se vê são quilômetros de arame farpado cercando terrenos vazios, à espera do sucesso do empreendimento. Na outra ponta, há agricultores, obrigados a deixar as propriedades, que ainda não receberam nada, com indenizações presas na Justiça. Algumas pessoas enlouqueceram, caíram em depressão e, como diz Noêmia, até “morreram de paixão” pela terra perdida.

RISCO DE DESAPROPRIAÇÃO NA INFÂNCIA

Apesar disso, a Codin afirma que “não há impasse” algum referente às indenizações, e que todas as obrigações da companhia “estão sendo rigorosamente cumpridas”. Segundo o órgão, cada área desapropriada teve laudos e valores atribuídos específicos, não divulgados. O total apurado, diz a Codin, foi depositado em juízo, enquanto a Prumo afirma que, embora a responsabilidade seja da Codin, apoia o estado na realocação de famílias.

No caso de Noêmia e de parte dos moradores de localidades como a Água Preta, ainda não há definições. Já são anos convivendo com a incerteza.   quando tentarão, mais uma vez, tirá-los de casa. Uma situação que abalou a saúde de Noêmia, às voltas com a pressão alta. Ficou debilitada. O que a mantém forte, então, na resistência? Ela diz que pode ser uma lembrança de infância e adolescência, quando seu pai, em Itaúna, Minas Gerais, também lutou contra a desapropriação. Um dia, ela perguntou por que ele não entregava os pontos:
— Ele me deu uma resposta que nunca mais esqueci: “O homem que não cuida e não defende sua terra, não defende nem a sua família”.




O QUE É O SUPERPORTO?



Interior de casa abandonada às margens da estrada que leva ao Porto do Açu - Daniel Marenco 


Além de terminais portuários, um deles offshore, o Porto do Açu conta com uma área contígua para a instalação do distrito industrial e de uma retroárea para armazenamento de produtos. Atualmente, segundo a Prumo Logística, que gere o negócio, estão instaladas na área, entre outras, empresas como a NOV, que produz tubos para a indústria de óleo e gás; a Wartsila, de montagem e produção de geradores e motores de navio, e Ferroport, com um terminal dedicado à exportação de minério de ferro. Além disso, afirma o grupo, outros contratos foram assinados com empresas que estão desenvolvendo suas unidades no porto, mas ainda não começaram a operar.
“Com a operação das empresas que atuam no Porto do Açu, cerca de cinco mil pessoas estão atualmente empregadas no Complexo Portuário do Açu, e a arrecadação de ISSQN do município de São João da Barra aumentou cerca de 7.500% nos últimos anos, chegando a mais de R$ 60 milhões por ano, contribuindo para acelerar o desenvolvimento sócio econômico da região Norte Fluminense”, afirma a Prumo Logística.
Para os próximos anos, a empresa prevê a expansão do T-MULT (Terminal Multicargas), de 500 para 1.200 metros de cais. Também está prevista a dragagem do canal de acesso e berços do T-OIL (Terminal de Petróleo) para até 25 metros de profundidade, permitindo a atracação de navios de 320 mil toneladas. É prevista ainda a instalação de um acesso ferroviário até o distrito industrial de São João da Barra, previsto no Programa de Investimentos em Logística (PIL) do governo federal, ligando a região ao Rio e a Vitória, no Espírito Santo.




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