O que falta para o transporte entrar nos trilhos


O Brasil depende dos caminhões. O fato ficou evidente após a greve dos caminhoneiros de 2018, em que a vulnerabilidade do setor de transportes foi exposta. O abastecimento de remédios, alimentos e gasolina ficou comprometido em, ao menos, 24 estados (além do Distrito Federal) com a paralisação da classe. Mas não é só isso, a nossa dependência desse tipo de transporte também está relacionada a outros problemas como alto risco de acidentes nas estradas, emissão de gases de efeito estufa (GEE) e o alto custo de manutenção da malha viária.
Não à toa o transporte rodoviário é um dos principais poluidores do país. Conforme mostraram os dados do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA) , o tráfego rodoviário foi responsável por 48% das emissões de gases de efeito estufa na matriz energética brasileira em 2017, totalizando 209 milhões de toneladas de CO2 jogados na atmosfera. Dessas emissões, cerca de 50% vêm de caminhões de carga e o restante da mobilidade de passageiros.
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Quais as cargas que estão consumindo esse diesel todo nas estradas brasileiras? Ao contrário do que se imagina, não são os os granéis agrícolas e minerais, mas sim a chamada carga geral – utilitários do cotidiano como eletrodomésticos, alimentos e bebidas processados, produtos básicos de borracha, plástico e manufaturados. Segundo o Plano Nacional de Logística (PNL) de 2018, o transporte de carga geral corresponde a 73% do que é transportado nas rodovias. O valor supera a soma do volume dos granéis agrícolas, como grãos (6%), granéis líquidos, como combustível (5%) e sólido não agrícola, como minérios (16%) juntos.
Esses fatores nos tornam uma anomalia dentre os países de dimensões continentais. Especialistas apontam que o modo de tornar a matriz mais eficiente, reduzindo os danos ambientais e perdas humanas, é investir mais no transporte ferroviário, como fazem os Estados Unidos e a União Européia. No Brasil, entretanto, para explorar melhor a malha ferroviária é preciso assegurar a livre passagem de quem precisa da ferrovia.
Um dos grandes desafios para o Brasil é usar as ferrovias de maneira mais eficiente. Por um lado, o país precisa de mais ferrovias. Isso exige investimento. Mas ao mesmo tempo também precisamos usar melhor as linhas já existentes. Muitos trechos estão abandonados ou subutilizados. Um fato recorrente na malha brasileira, como apontou um levantamento feito pela Revista Ferroviária, a principal publicação do setor. De acordo com o estudo, 42% da rede está sendo explorada adequadamente. A maior parte da malha ainda é subaproveitada, das quais 31% está abandonada e 27% está semiabandonada, com mais da metade da capacidade sem utilização.
Ainda segundo o levantamento feito pela Revista Ferroviária, a maior ociosidade está na Malha Oeste, operada pela Rumo, que vai do oeste do estado de São Paulo até a Bolívia, passando pelo Mato Grosso do Sul. Até 91% da ferrovia está sem tráfego ou subutilizada. Nas outras regiões, a situação não é muito melhor. No Nordeste, 73,77% da Transnordestina está praticamente sem uso. Na Ferrovia Centro Atlântica S/A (que atende os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Bahia, Espírito Santo, Distrito Federal, Sergipe, Minas Gerais) , operada pela VLI, o índice é de 70,74%. Na Malha Paulista, também da Rumo, 62,27%. Na Malha Sul (que cobre os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo), 50,63% dos trilhos estão mal utilizados.
A explicação para esse fato é histórica. Na década de 1990, quando ocorreu a primeira grande privatização das ferrovias, cada trecho da malha nacional ficou com uma concessionária diferente. O formato de contrato firmado na época – e até então vigente – não torna obrigatório que as concessionárias permitam que trens de terceiros transitem em suas ferrovias. Isso restringe o direito de passagem de cargas e pessoas.
Mas isso está para mudar. Há um projeto de lei no Senado, de autoria do senador José Serra (PSDB-SP), que prevê a utilização de um mesmo trecho ferroviário por várias empresas. A lei acabaria com a exclusividade. Ela prevê a criação de uma entidade privada de autorregulamentação ferroviária. O texto já foi aprovado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), em dezembro de 2018.
A aplicação desse direito já é tema de discussão entre especialistas. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) considera que uma medida viável para recuperar o setor seria a prorrogação antecipada desses contratos de concessão, de forma que as concessionárias tenham que, a partir da renovação, reservar uma parcela da capacidade instalada da ferrovia para compartilhamento e investir valores pré-estabelecidos na melhoria e ampliação das malhas. Isso aqueceria a indústria e o comércio de seus produtos, fazendo-os chegar em lugares até então distantes.
Como liberar o uso da linha de trem para terceiros sem que o concessionário, que pagou pelo direito de explorar o trecho, seja prejudicado? O consultor Bernardo Figueiredo, ex-diretor geral da Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) tem uma sugestão. Segundo ele, a garantia de disponibilidade para circulação de trens de terceiros poderia ser compensada com o pagamento de uma tarifa, como ocorrem em algumas rodovias com trechos privatizadas. “Quanto mais trens circularem na ferrovia, menor será o custo fixo atribuído a cada trem. Assim, mais lucrativa será a exploração da ferrovia e maior será o valor da concessão, não gerando nenhum prejuízo à concessionária”, afirma Figueiredo.
Do modo sugerido por Figueiredo, os trens de terceiros remunerariam a concessionária da mesma forma que os trens da própria empresa, na medida que o preço pelo uso reflita adequadamente os custos do concessionário. Para Figueiredo, caso a capacidade da ferrovia não seja totalmente utilizada pelos trens do concessionário, ele poderá ganhar mais com o uso dos terceiros. Caso o cenário seja outro, em que a capacidade esteja plenamente utilizada, o concessionário poderá expandir o seu trecho para atender a demanda.
O projeto de lei que circula no Brasil se inspira em alguns pontos no modelo americano, onde quase 100% da malha é privatizada. Os Estados Unidos são o país que possui a maior malha ferroviária do mundo, com 200.000 quilômetros espalhados por nove redes. Algumas dessas linhas, inclusive, fazem conexões com os países vizinhos, Canadá e México.Desde que o setor foi entregue à iniciativa privada nos anos 1980 em uma proposta de autorregulação, os preços pelo transporte de carga deixaram de ser determinados pelo governo e passaram a ser estabelecidos de acordo com a demanda do mercado, o que tornou as empresas altamente competitivas e focou os investimentos onde realmente era importante. Bom para o cliente e também para empreendedor.
Em busca da receita certeira, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, assinou um memorando de cooperação com o Departamento de Transportes americano para fomentar a regulamentação e os investimentos no setor ferroviário brasileiro em junho deste ano. É uma oportunidade para observar o modelo americano e aproveitar as boas lições dele. Se lá deu certo, aqui também pode ser uma opção.

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